segunda-feira, 30 de novembro de 2009

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Tênis X Frescobol - Rubem Alves

Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.
Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: ‘Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?\' Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.’
Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: ‘Eu te amo, eu te amo...’ Barthes advertia: ‘Passada a primeira confissão, ‘eu te amo\' não quer dizer mais nada.’ É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: ‘Erótica é a alma.’
O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada - palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.
O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra - pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir... E o que errou pede desculpas; e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...
A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá...
Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos Primeiros cadernos, é sobre este jogo de tênis:
‘Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: ‘Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo\'. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: ‘Tens razão, minha querida\'. A situação está salva e o ódio vai aumentando.’
Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão... O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.
Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim...
(...)

Rubem Alves

Sobre os Apaixonados - Rubens Alves

Dedico esta crônica aos apaixonados, mesmo sabendo que servirá para nada. É inútil falar aos apaixonados. Os apaixonados só ouvem poemas e canções. A paixão, experiência insuperável de prazer e alegria, pelo fato mesmo de ser uma experiência insuperável de prazer e alegria, coloca o apaixonado fora dos limites da razão.
Todo apaixonado é tolo. Pode ser que ele escute a fala da razão. Escuta mas não acredita. Diz: "O meu caso é diferente!" Tolo mesmo é quem tenta argumentar com os apaixonados.
Começo minha inútil meditação com um verso terrível de T. S. Eliot. Ele está rezando. Ele sabe que somente Deus tem poder para lidar com a loucura da paixão. Ele reza assim: "...e livra-me da dor da paixão não satisfeita, e da dor muito maior da paixão satisfeita".Todo mundo sabe que a paixão não satisfeita dói. Mas poucos sabem que a paixão só existe se não for satisfeita. A paixão é um desejo de posse que, para existir, não pode se realizar. Como a fome: depois do almoço a fome acaba...Paixão é fome. Ela só floresce na ausência do objeto amado. Mais precisamente, ela vive da ausência do objeto amado. Não se trata de ausência física, o objeto amado distante, longe. A dor da ausência física tem o nome de saudade. Saudade tem cura. A saudade é curada quando o objeto volta. A dor da paixão é diferente. Não tem cura. A saudade do objeto amado, mesmo quando ele está presente, é o perfume característico da paixão. Cassiano Ricardo sabia disso e escreveu: "Por que tenho saudade de você, no retrato, ainda que o mais recente? E por que um simples retrato, mais que você, me comove, se você mesma está presente?" Que coisa mais esquisita! Como pode ser isso? Como pode se sentir saudade de algo que está presente? A resposta é simples: a gente sente saudade de uma pessoa presente quando ela está se despedindo. Cecília Meireles, desenhando sua avó morta, a quem ela muito amava, disse: "Tu eras uma ausência que se demorava; uma despedida pronta a cumprir-se." Dirão: "É natural. A avó já era velhinha..." É verdade. Mas o que caracteriza o olhar apaixonado é que ele percebe, no rosto da pessoa amada, essa ausência que se anuncia e essa despedida pronta a cumprir-se. O apaixonado pensa que sua paixão tem a ver com o objeto. Ele não sabe que foi o seu olhar que o tornou encantado. Os poetas são pessoas apaixonadas pela vida. E a sua paixão faz com que ela, a vida, apareça sempre banhada por uma luz crepuscular. Rilke perguntava, sem esperanças de resposta: "Quem foi que assim nos fascinou para que tivéssemos um ar de despedida em tudo que fazemos?" É o olhar da pessoa apaixonada que cria a imagem do objeto da paixão. É sobre Cecília Meireles que o Drummond escreve. Mas sua descrição, eu creio, se aplicaria a todos os objetos da paixão: Não me parecia criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços de sua presença entre nós, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos. Distância, exílio e viagem transpareciam no sorriso benevolente... que confirmava a irrealidade do indivíduo. A dor da paixão não satisfeita é essa: o apaixonado deseja possuir o objeto do seu amor, mas ele escapa sempre. Por isso ele sofre. Movido pela dor, quer possuí-lo. Não sabe que, para que sua paixão continue a existir, é preciso que ele continue escapando sempre. A paixão só ama objetos livres como os pássaros em vôo. "...e da dor muito maior da paixão satisfeita". A dor da paixão não satisfeita é iluminada por uma alegria. O apaixonado vive na presença de que um dia ele possuirá o objeto da sua paixão. Mas a "dor muito maior" da paixão satisfeita não tem mais esperanças. O objeto se desfez. Ela vive na tristeza do objeto perdido.Escrevi uma estória sobre isso. A Menina era apaixonada pelo Pássaro Encantado. Mas ela sofria porque o Pássaro era livre. O Pássaro Encantado era sempre uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se. O Pássaro lhe disse que era preciso que fosse assim, para que eles continuassem apaixonados. Ele sabia que a paixão ama pássaros em vôo. Mas a Menina não acreditou. Prendeu-o numa gaiola. Gaiola? Há as feitas com ferro e cadeados. Mas as mais sutis são feitas com desejos.Esquisito o que vou dizer: a alma é uma biblioteca. Nela se encontram as estórias que amamos. Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa, O paciente inglês, As pontes de Madison, Amor nos tempos do cólera, A menina e o pássaro encantado. As estórias que amamos revelam a forma do nosso desejo. Delas, escolhemos uma. É a nossa gaiola. Gaiola na mão, saímos pela vida à procura do nosso Pássaro. Quando imaginamos havê-lo encontrado - que felicidade! Ficará feliz em nossa gaiola. Será o amante da nossa estória de amor: eu para você, você para mim... Nós o colocamos lá dentro e pedimos que nos cante canções de amor. Acontece que o Pássaro também tinha a sua estória. E era outra. Todo Pássaro deseja voar. Ele bate suas asas contra as grades, suas penas perdem as cores e o seu canto se transforma em choro. E, de repente, ele se transforma. Não mais o reconhecemos. É um outro. Essa é a razão por que a dor da paixão satisfeita é muito maior. Contada assim, a estória parece ter um vilão e uma vítima. A verdade é que os dois são vilões, os dois são vítimas. O desejo da gente é sempre engaiolar o outro e levá-lo pelos caminhos que são nossos. Isso vale para tudo: marido-mulher, pai-filha, mãe-filho, patrão-empregado, professor-aluno... Não admira que Sartre tenha dito que "o inferno é o outro".Não haverá uma saída. Lembro-me de um pequeno poema de Pearls que sugere a possibilidade de uma relação sem gaiolas:Eu sou eu. Você é você.Eu não estou neste mundo para atender às suas expectativas.E você não está neste mundo para atender às minhas expectativas.Eu faço a minha coisa.Você faz a sua.E quando nos encontramos, é muito bom.